
21 out A Reforma Tributária no ITCMD e os impactos sobre heranças e doações
Por Enio Lima Neves e João Pedro de Souza Alves
É tendência, nos modelos de tributação de países desenvolvidos orientados pelas diretrizes da OCDE[1], tributar menos o consumo e mais a renda e o patrimônio, uma vez que a tributação sobre o consumo afeta negativamente as classes menos favorecidas. Por outro lado, a fixação de uma carga tributária sobre a renda e o patrimônio pode contribuir para a equalização das diferenças entre as classes, de forma a tributar melhor os indivíduos de altas rendas.
Assim, com o discurso de não elevar a carga tributária, o Brasil deu início à Reforma Tributária a partir da aprovação da Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023[2]. A emenda trouxe em seus princípios gerais a obrigação de observância da simplicidade, transparência e justiça tributária[3], além da determinação de que as alterações legislativas atenuem os efeitos regressivos da tributação[4].
Nesse contexto, o foco principal dessa Reforma tem sido a tributação sobre o consumo. Contudo, a EC 132/2023 também alterou algumas disposições que afetam o patrimônio. Neste artigo, ater-nos-emos às alterações do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), com destaque para a progressividade do imposto, a fixação da competência do sujeito ativo (ente estatal) e a incidência sobre ativos no exterior. É importante ressaltar que o texto constitucional ainda precisa ser disciplinado por legislação complementar, a qual é objeto do Projeto de Lei Complementar nº 108/2024 (PLP nº 108/2024)[5], em tramitação no Congresso Nacional.
De todo modo, sem prejuízo da legislação complementar pendente de aprovação, cabe analisar como a Reforma impactará as heranças e doações, especialmente sob a perspectiva do PLP 108/2024, que promoverá significativas alterações na tributação do ITCMD.
1. Alíquotas e Progressividade
Inicialmente, oportuno observar que a materialidade do ITCMD está relacionada à transmissão da herança, incidindo quando do óbito do titular dos bens e direitos. A segunda hipótese de incidência do ITCMD são os atos de transmissão gratuita de bens e direitos, contemplando a doação de bens imóveis e móveis, bem como direitos representativos do patrimônio, tais como ações, quotas de empresas e títulos de crédito.
Tratando especificamente da alíquota do imposto, nota-se que a tributação do ITCMD poderá ser uma das mais afetadas com a Reforma Tributária, uma vez que a partir da revisão do art. 155, §1º, da Constituição Federal pela Emenda Constitucional 132/2023, relevantes alterações foram realizadas sobre o critério quantitativa na incidência do tributo.
Nesse sentido, foram acrescentados alguns dispositivos à Constituição Federal, de forma que o imposto passou a ser progressivo[6]. Com isso, o que antes era facultativo aos entes competentes, tornou-se obrigatória a progressividade da alíquota do imposto, que deve ser aplicada em razão do valor do quinhão, legado ou doação, respeitada a alíquota teto fixada por Resolução do Senado Federal, que atualmente é de 8%[7], embora já trâmite novo projeto no Senado para aumentá-la para 16%[8].
Olhando para o Estado de São Paulo, a norma atualmente vigente estabelece uma alíquota única de 4% para o ITCMD, sem qualquer progressividade. Assim, o imposto incide de maneira uniforme, sem distinção quanto ao valor do ato a ser tributado, com exceção apenas para a isenção aplicável a algumas hipóteses específicas.
Porém, diante da determinação da EC 132/2023, já tramita no Estado de São Paulo o Projeto de Lei nº 7/2024 (PL nº 7/2024), que visa adequar a legislação estadual nesse aspecto quantitativo, alterando a Lei nº 10.705/2000, de modo a fixar alíquotas progressivas para o ITCMD.
Assim, se aprovado o PL 7/2024, o imposto em São Paulo passará a ter alíquotas de 2% a 8%, graduadas de acordo com os valores dos ativos envolvidos. O enquadramento do valor em sua respectiva faixa será determinado pela UFESP (Unidade Fiscal do Estado de São Paulo). Considerando a cotação atual da UFESP equivalente a R$ 35,36, a hipotética incidência do ITCMD em 2024 seria a seguinte:
UFESP |
VALOR EM REAL | ALÍQUOTA |
Inferior ou igual a 10.000 |
Abaixo de R$ 353.600,00 |
2% |
10.001 – 85.000 |
R$ 353.600,00 – R$ 3.005.600,00 |
4% |
85.001 – 280.000 |
R$ 3.005.600,00 – R$ 9.900.800,00 |
6% |
Superior a 280.000 |
Acima de R$ 9.900.800,00 |
8% |
É oportuno notar que, para impedir a tentativa de burlar a progressividade do imposto sobre os atos de doação, o PLP 108/2024 estabelece que, na hipótese de doações sucessivas entre as mesmas partes (doador e donatário), dentro de um período definido em lei, o ITCMD deverá ser recalculado a cada nova doação ocorrida no período, adicionando-se à base de cálculo os valores anteriormente transmitidos e deduzindo-se o ITCMD já recolhido, sempre observando a progressividade da alíquota.
2. Do Alargamento do Fato Gerador
Se aprovado o PLP 108/2024, de acordo com a redação atualmente proposta, a lei complementar trará mudanças significativas quanto às hipóteses consideradas como fato gerador do imposto, que demandarão uma cuidadosa revisão no planejamento patrimonial e sucessório, especialmente de famílias empresárias.
No que tange ao fato gerador do imposto, a redação contida no projeto, além de ratificar que o excesso de meação e de quinhão representam uma doação, como já é aplicado pelos Estados, passa a considerar também como doação as transmissões realizadas entre pessoas vinculadas por meio de atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para um sócio, praticados por liberalidade e sem justificativa negocial, tais como a distribuição desproporcional de dividendos, a cisão desproporcional e o aumento ou a redução de capital a preços diferenciados entre os sócios. No mesmo sentido, considera-se doação o perdão de dívidas sem comprovada justificativa negocial.
Observa-se que a redação do PLP promove o alargamento das hipóteses de ocorrência do fato gerador, sob a justificativa de o Estado adotar uma postura antielisiva, o que, no final, poderá resultar em incremento da arrecadação fiscal a partir da incidência do ITCMD sobre novas materialidades que poderão ser ainda questionadas.
Nesses atos entre pessoas vinculadas, embora a norma expresse que o imposto incidirá apenas quando subsistir liberalidade e ausência de justificativa negocial comprovada, o texto não traz critérios objetivos para tanto. Diante de tal subjetividade, é possível que a interpretação fiscal tenda à tributação desses atos, cabendo ao contribuinte agir com cautela e diligência nos registros de cada ato e na demonstração de sua justificativa, o que não eliminará a possibilidade de aumento da litigiosidade nas operações envolvendo planejamento societário e tributário.
3. Alterações da Base de Cálculo
Outra modificação relevante proposta no PLP 108/2024 é a da base de cálculo do imposto. Nesse sentido, a redação do art. 171 do PLP estabelece que, nas operações que envolvam quotas e ações de uma sociedade não negociada em bolsa ou balcão organizado, a base de cálculo deve ser calculada com “metodologia que apresente, no mínimo, o patrimônio líquido ajustado pela avaliação de ativos e passivos a valor de mercado, acrescido do valor de mercado do fundo de comércio”. É importante observar que, em comparação ao critério atual, a adoção do valor de mercado, incluindo o fundo de comércio, consequentemente majorará a tributação, visto que, pela regra atualmente vigente no Estado de São Paulo, a base de cálculo corresponde ao valor patrimonial apurado a partir do balanço patrimonial, sem qualquer imposição de reavaliação de ativos e fundo de comércio.
Por outro lado, pacificando uma questão em que a jurisprudência dos tribunais tem se posicionado a favor dos contribuintes, o art. 172 do PLP expressa a permissão de dedução da base de cálculo do ITCMD das comprovadas dívidas do de cujus. Nesse ponto, o PLP agiu corretamente, uma vez que os Estados vêm aplicando entendimento diverso, a exemplo da Lei Estadual nº 10.705/2000, do Estado de São Paulo, que veda o abatimento de débitos que onerem o bem transmitido no cálculo do imposto. Ora, considerando que o patrimônio realmente transmitido do espólio aos herdeiros não se estende às suas dívidas, uma vez que os herdeiros não respondem pelas dívidas do espólio que superarem o patrimônio, essa alteração corrige a incoerente postura adotada pelo Fisco, tributando-se com isso apenas o resultado líquido do patrimônio deixado pelo espólio.
4. Da Sujeição Ativa e Responsabilidade de Recolhimento
A EC 132/2023 promoveu uma alteração importante quanto ao Estado competente para a cobrança do imposto causa mortis em operações com bens móveis, títulos e créditos, definindo que o sujeito ativo será o Estado onde era domiciliado o falecido. Revogou-se, assim, a regra que atribuía competência ao Estado em que fosse processado o inventário ou arrolamento, previsão que abria a possibilidade de planejamentos tributários questionáveis.
Já na proposição do PLP 108/2024, o art. 177 inova ao atribuir a responsabilidade às instituições financeiras pela retenção e recolhimento do imposto nas operações que envolvam a transmissão de bens ou direitos que estejam sob sua administração ou custódia. Desse modo, essas instituições passam a ser responsáveis diretas, e o contribuinte terá responsabilidade subsidiária.
6. Competência em Operações com Sujeito Residente no Exterior
No que diz respeito às operações envolvendo doador ou de cujus com domicílio no exterior, ou ainda bens e direitos no exterior, ante a ausência de lei complementar regulando a matéria, a EC 132/2023 determinou que, até que a referida lei entre em vigor, no caso de bens imóveis, o imposto será devido ao Estado em que estiver situado o bem; na hipótese de domicílio do doador no exterior, a competência será do Estado em que estiver domiciliado o donatário (beneficiário) ou, supletivamente, no Estado onde se situar o bem. Já no caso de inventários com ativos no exterior, será competente o Estado de domicílio do de cujus e, se este residir no exterior, o Estado de domicílio dos herdeiros ou sucessores.
O PLP 108/2024, ao regulamentar essas questões, acaba por reproduzir regra semelhante à trazida pela Emenda Constitucional 132/2023. Dessa forma, disciplina questões adstritas à tributação do ITCMD de herança e doações envolvendo ativos e domicílio no exterior, pacificando a discussão acerca da ausência de lei complementar.
Conclusão
A Reforma Tributária, especialmente no que tange às mudanças no ITCMD, representará um marco significativo na evolução do sistema tributário brasileiro, que pretende ser mais justo e equitativo. Nesse passo, a introdução da progressividade obrigatória nas alíquotas do ITCMD, a ampliação das hipóteses de fato gerador e a redefinição das bases de cálculo apontam esse caminho, assim como a regulamentação da competência tributária em operações internacionais, com a expectativa de gerar maior eficiência e transparência no processo de arrecadação.
No entanto, essas mudanças também trazem desafios significativos para o planejamento patrimonial e sucessório, especialmente para famílias empresárias, que precisarão se adaptar a um cenário fiscal mais complexo e potencialmente litigioso. Assim, é essencial que os contribuintes estejam atentos às novas regulamentações e busquem estratégias adequadas para mitigar riscos e otimizar a gestão de seus patrimônios à luz das novas diretrizes tributárias.
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Enio Lima Neves – sócio fundador do escritório Enio Neves Advocacia, com MBA em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Especialização em Direito Tributário pela FACAMP
João Pedro de Souza Alves – estagiário do escritório Enio Neves Advocacia, cursando o 3º ano do curso de Direito do Centro Universitário Eurípedes de Marília – UNIVEM
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[1] CARVALHO JUNIOR, Pedro Humberto Bruno de. “O sistema tributário dos países da OCDE e as principais recomendações da Entidade: fornecendo parâmetros para a Reforma Tributária no Brasil”. 1ª edição. Brasília: IPEA, 2022. Material acessado em 17/10/2024 e disponível no link – https://portalantigo.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/pubpreliminar/220310_publicacao_preliminar_o_sistema_tributario_dos_paises_da_ocde.pdf
[2] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Emendas/Emc/emc132.htm
[3] Princípios gerais tributários previstos no Art. 145, § 3º, da Constituição Federal, incluídos pela EC 132/2023
[4] Conforme Art. 145, § 4º, da Constituição Federal, incluído pela EC 132/2023
[5] https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2438459
[6] Progressividade incluída no texto constitucional – CF, Artigo 155, §1º, VI.
[7] De acordo com a Resolução do Senado Federal nº 9 de 05/05/1992
[8] Projeto de Resolução do Senado n° 57, de 2019, propõe alterar o teto da alíquota de 8% para 16%.
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